Infanciamente - a infância de hoje e a infância de outros tempos

Quero ser árvore

Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)...

Vontade louca de abraçar uma árvore! No calendário escolar nos lembravam que ela tinha um dia: 21 de setembro. E preferencialmente nesta data a professora virava jardineira, ecologista, educadora ambiental, e nos levava para por a mão na terra, ao som de Cecília Meireles: “Quem me compra um jardim com flores? borboletas de muitas cores, lavadeiras e passarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos?”. E íamos repetindo o poema, que virava mantra, na esperança de escrever com caligrafia perfumada assim a próxima redação! Como quem plantaria no papel a vocação para a escrita!

Era a ecologia antes da ecologia. Nem se adivinhava que essa seria uma bandeira dos novos tempos, uma preocupação universal. Parecia-nos natural a integração com a natureza, a convivência pacífica com a terra-mãe, o respeito orgânico do filho que quer ter colo e solo a vida inteira!

Também éramos muito novos para entendermos das obrigatoriedades que apregoavam nossos pais: na vida, todo mundo tem que plantar uma árvore! Eis aí uma visão de futuro! Um alerta para compensar a arrogância das gentes!

Uma premonição de que a relação predatória com o espaço iria nos colocar na condição cada vez mais espantosa (e numerosa!) de bestas-feras! O que pode ser alguém que fere com ferro e fogo o ventre inviolável da existência na Terra?

Felizes os povos que crêem que os antepassados habitam as árvores. Felizes os índios das tribos do Oregon, que depositavam no tronco escavado de uma velha árvore, em posição fetal, seus anciãos mortos. Felizes os juízes tribais que se reúnem ao redor de um baobá para resolver as disputas locais.

Por isso quero ser Madagascar, com sua avenida de baobás! Quero ser a Maria Gorda de Paquetá, que veio de Manaus, para viver na Praia dos Tamoios. Quero ser a árvore da louvação a baobá, de Mossoró, que a seu pé, espalha flores e frutos, para afinar com tambores as origens.

Também quero ser árvore de fábula, das velhas fábulas. Pode ser um salgueiro, um pinheiro, um carvalho, um freixo, um cedro, um olmo, uma figueira, um pessegueiro, uma castanheira. Na voz de Esopo, La Fontaine ou Leonardo da Vinci. Abri-los, na estante, na biblioteca, em casa, na escola, é também plantar árvores de palavras, sementeiras da imaginação!

Também posso ser as sandálias mágicas de Hermes, feitas com folhas de tamareira e mirtilo. Ou o chorão das lendas dos mouros, ou a testemunha do amor do cacique Tupi e da bela Tapuia Jurema. Ou a cortina de ramas que escondeu a Virgem e o menino Jesus na fuga para o Egito.

Não me importaria em ser o emblemático Pau-Brasil, com seu extrato vermelho-forte a cobiçar os cortes de tecidos. Ou os galhos maiores, a sonhar com a música de violinos, harpas e violas.

Mas, o presente ideal, talvez fosse virar uma cerejeira do Japão, com as sakuras brotando pelo corpo-tronco, e testemunhando a permanência da princesa da árvore de flores abertas.

Mas, se depois da passagem da manada de homens, não houver senão a destruição, que ainda me permitam ser um escultura de Krajcberg, a denunciar para sempre as queimadas ilegais nas florestas.

E se o grito contra a barbárie não for suficiente, que eu possa também ser uma retorcida árvore do cerrado, estampando no ar seu jeito coreográfico de se defender do fogo!

Vontade louca de abraçar uma árvore. De caminhar pelas aléias do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, de borboletear meus olhos pelo Mangal das Garças, de Belém, de abrigar-me no palácio estufado de vidro e ferro, como um caraguatá a esconder mais que ninhos de jacarés, no Jardim Botânico de Curitiba.

Vontade louca de abraçar uma árvore. E perdoar, e não deixar cair a nódoa no pano, e cultivar pinhas de prata…

Vontade louca de ser abraçado por uma árvore, em todos os dias da minha vida! E nos seus braços, sussurrar poesia, num tempo que já não é o tempo, mas a voz de Camões: “se não te celebrar como mereces, cantando-te, sequer farei contigo doce, nos casos tristes, a memória”.
Vontade louca de ser árvore…

Celso Sisto, autor deste texto, também é Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.


3 comentários

  1. Eu também quero ser árvore!
    Ipê amarelo de poesia, no cair da tarde, magicamente arrebatador.

  2. Parabéns! Me fascinei com tamanha sensibilidade e beleza de sentimentos.

  3. Lidíssimo! Também amo as árvores!