Infanciamente - a infância de hoje e a infância de outros tempos

A falta que faz um herói

Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)...

Estória, estória! – diz o narrador oral em Cabo Verde. Ao que a platéia responde, “Fortuna do Céu, Amém”! E pronto, já se pode começar a narrar… A porta foi aberta, o tapete foi estendido, o pacto foi feito!

Mas seja lá qual for a história, queremos mesmo é a perpetuação do herói. Todo protagonista tem vocação para herói. E o leitor, cheio de fé, roga para que a aventura seja forte o suficiente, para que sua emoção seja chacoalhada, produza ecos, reverbere e resulte em substância invisível e inebriante, que nutra e sirva de recanto para o pensamento, enquanto a fantasia enovelada no corpo e no sopro da voz faça explodir os relógios que regulam o tempo.

Meu primeiro herói foi o soldadinho de chumbo, que deu a volta ao mundo na barriga de um peixe, que se deixou imolar para encontrar uma nova maneira de estar. Eu conheci sim as metamorfoses do puro amor!

 

Outro herói foi meu pai, que brigou com a freira do colégio, por ter me dado uma reguáda nas costas, para que eu ficasse quieto e não saísse a toda hora do meu lugar. Eu conheci sim as batalhas do poder!

Depois veio Nacional Kid. E o desejo de voar. De viver em outros reinos, de proteger e de salvar. Eu conheci sim as máscaras das identidades.

Mas teve o Manda Chuva, o Bandit, o Muttley, o Leão da Montanha, que fabularmente  foram me catalogando. Emprestando-me peles e jeitos de resolver os apuros. Eu conheci sim as animalescas artimanhas!
Mas a bondade era naquele tempo uma necessidade que fazia todo mundo querer ser Gasparzinho! E era feliz quem fazia o bem. Ainda que tudo não passasse de fantasmagoria.

Até que alguém ouviu o grito de Zezé, na dor de perder o amigo Portuga atropelado pela centopéia de ferro. Os novos tempos não eram amenos, mas talvez pudessem devolver o gosto doce da laranja lima.

E foi o livro que me acenou com a possibilidade de haver herói menino, bem do meu tamanho. Eis a galeria tatuada na memória da pele-celulose: Peter Pan, Tistu, o menino do dedo verde; Marcelo, Marmelo Martelo; O menino maluquinho. Não se espante! A galeria também tem meninas: Alice no país das maravilhas e Píppi Meialonga.

Mas O Pequeno Príncipe foi talvez a linha divisória. Na passagem do tempo, era para ser tão sábio e profundo como aquele meninim que eu lutava com as palavras. Ética, filosofia, psicologia, não importa que área específica possa ser devassada com a lembrança do pequeno nobre, querendo sobreviver no deserto dos homens áridos. Eu conheci sim países inóspitos de raposas e serpentes, com carneiros dentro de caixas, e rosas envidraçadas.

Hoje, na combustão dos litros de petróleo, dos territórios que escondem diamantes, das crenças e povos que preferem as cinzas e os escombros, das torres derrubadas por deuses que trocaram de nomes, e agora se chamam Ordem Econômica, Imperialismo Americano, Liberalismo Sem Fronteiras, Capitalismo Selvagem, mas também poderia se chamar Deus da Globalização, vou atentar contra o embrutecimento e ler bem alto, os nomes desses meninos que nos fazem viver entre a nossa idade atual e a infância ideal, para esquecer que houve um outro 11 de setembro, agora eternizando na pedra, o nome dos que morreram.

Vou atentar contra o embrutecimento e ler bem alto o nome dos que não quero que morram, porque através da literatura, farão brotar outras vidas e outros arranha-céus.

Nos livros o mundo ainda é melhor!

Celso Sisto, autor deste texto, também é Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.