Infanciamente - a infância de hoje e a infância de outros tempos

Uma pele de mil cores

Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)...

Fui feliz. Lá no passado enfileiravam-se as brincadeiras. A fantasia transbordava o meu imaginário. As cantigas entravam e saiam pelas janelas da casa e da gente. Adoçavam a boca. Coloriam paredes. Espalhavam alegria. Corriam para a rua.

A rua rodava. Era parque de diversões. Parque das emoções. Escola de fazer amigos. Lugar de treinar personagens, de jogar o jogo da vida assim na base do faz de conta: pula carniça, chicotinho queimado, pique bandeira, gritaria e zoeira; berlinda, passa-anel, telefone sem fio, queimado, e estava tudo acabado! Tudo silenciava de repente quando uma das mães contava histórias.

Carregando coroas e mantos invisíveis, para o reino da rua risonha, fabricávamos laços, sentados nas calçadas. E nossas ações-agulhas, iam entrelaçando os caminhos, apertando mãos, estreitando abraços. Acostumando-nos ao bordado que nascia com a convivência. Era assim que descobríamos que o mundo ia além da nossa casa e era muito maior que a envergadura das nossas asas. O mundo era outro. O mundo era o Outro. E ia engordando o nosso mapa, aos poucos.

O vento trazia notícias, perfumes, crenças. Confessava acontecidos e gritava manchetes. Empurrava-nos para outras partes. Aliado ao tempo, conduzia a carruagem. O corpo dava sinais das estações, e de aldeia virava país. Mas era o olho, só o olho arregalando-se, é que denunciava: transformados em gordas estrelas, em esfera, em globo é que sabemos que crescemos.

Pois foi assim: palmilhando o Céu, detentor de segredos, e curioso com o destino, que cresci. E cresceram comigo as histórias, a arte, a literatura. De todas as expedições aos cantos do mundo, ergueu-se, majestoso, o continente africano.

Primeiro os contos populares. Os livros de histórias africanas multiplicando a minha identidade. Ergueram-se em muitas línguas imaginárias, o Sameron, o Blimundo, o Tutu-Marambá, o Quibungo. Por isso, entrei na casa de Óscar Ribas, de Olinda Beja. Colhi paixões nos jardins-livros de Mia Couto e Pepetela. Chorei com Chinua Achebe, gritei com as mulheres de Paulina Chiziane, sussurrei preces com a poesia de Ana Paula Tavares em rituais seculares, e cruzei outros mares, encharcado da ancestralidade.

Hoje, banhado nas águas da Mãe África, carrego uma paixão continental. Enraizada tal qual as cantigas e nanas do baobá, principalmente quando se diz em lingala, no Congo: olélé olélé molíbá mákási (olelê, olelê, a corrente é muito forte). Ou quando se canta, em bamena, nos Camarões: woh meu ngo mbou le (que faz o menino chorar?). Até que se possa dizer em wolof, no Senegal: sama doom! sama soppe! dund a mata ñaan oo, moom laay ñaan sí Yálla (Meu menino! Meu querido! A vida merece que se reze e é por isso que rezo a Deus.). Ou, para celebrar, enfim, a infância, em Ruanda, quando se diz em kinyarwanda: ínjangue ínjangue yanjye írwaye um mutwe, mama arayígulíra íngofero nzíza (ao meu gato, ao meu gato lhe dói a cabeça; minha mãe lhe comprará um chapéu muito bonito).

Eu, com o chapéu bonito da fantasia, que a mãe de Ruanda me comprará, conquistarei muitas terras. Mas, é para misturar-me cada vez mais ao compromisso com a infância (ainda que mande a lei), que carrego no andor o sempre Mia, Ondjaki, Agualusa, Valter Hugo Mãe, Niki Daly, Meshack Asare.

Para celebrar a afro-brasilidade, congratulo-me com Joel Rufino dos Santos, Rogério Andrade Barbosa, Reginaldo Prandi: autores que me revelaram distintos mapas da literatura africana no Brasil.

E é no dicionário de Nei Lopes que quero morar. Para ajudar a amar a literatura africana. Para tornar a literatura socialmente útil. Para reforçar o pacto que fiz com a palavra-patuá: na beleza, na sorte, na magia, poder ser instrumento da vasta, múltipla e inesgotável cultura africana.

Sou feliz. Aqui, no presente, ergo a voz, para repetir, como disse aquele amado escritor: minha pele pode ter pouco tom, mas minha alma tem muitas cores!

Celso Sisto, autor deste texto, também é Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.


4 comentários

  1. Sem Palavras!
    Celso! Impossível fazer um comentário de qualquer texto seu.
    Você é fantástico, tens o DOM da PALAVRA!
    Amo ler o que você escreve e te invejo, pois o meu vocabulário é tão pobre…
    Enquanto leio fico viajando nas tuas palavras.
    Parabéns..
    Continue nos alimentando através dos teus escritos.

    1. Só agora vi seu comentário aqui! Obrigado pela suas palavras carinhosas. Tenho gostado muito de escrever crônicas e certamente os comentários dos leitores me ajudam muitíssimo! Obrigado!

  2. Celso, a africanidade mora em nós brasileiros, em nossos gestos, sabores, aromas, e nas diferentes infâncias que habitam em nosso país. A África está em nós como tatuagem. Parabéns pelo belíssimo texto.

    1. Simone, eu ando cada vez mais interessado nas africanidades. É preciso desvendá-la, trazê-la à tona, porque sim, tem muita gente que nega essa sua porção! E junto com essa paixão pelo continente africano, também tenho me dedicado a estudar as literaturas luso-africanas… Obrigado por seu comentário.