Infanciamente - a infância de hoje e a infância de outros tempos

O escritor e sua jornada

Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)...

A passos largos, em Passo Fundo

A professora mandava ler sempre. O livro do bimestre. “O menino de asas” marcou, lá na 6ª série. Lá nos escondidos dos 70. Pousou no meu coração. No meu ombro. Depois, levou-me, em alvoroço, a visitar o autor em seu ninho. O primeiro autógrafo estampado na caligrafia: Homero Homem. Pássaro-gente!

Ninguém esquece um primeiro autógrafo. Livro que se guarda até o fim. Esperando que depois possa servir para alguém igual a mim: colecionador de histórias. Mas, vai saber?! O livro foi crescendo lá dentro, cercado de memórias e vísceras. Ganhando outras páginas. Refazendo o mundo infinitas vezes. Desenhando álbuns de personagens. Me empurrando para o desejo de viver nas folhas. Desfolhar-me. Cair em solo fecundo. Sobreviver à queda e ao cânone!

O desejo de voar, esse é que não me largava! Um voar carregado de narrativas. Um voar atapetado da palavra-milharal, que alimentava e fazia voltar várias vezes ao mesmo campo-de-livros. O reino da fantasia que se alongava em pomar e respostas. Tudo porque uma professora me fez ir do livro ao criador.

Do menino alado, fui conduzido a Ícaro. Foi ele de fato meu primeiro herói. Sua história, minha primeira história de jovem dono do mundo. Bastava fechar os olhos, no quarto escuro e vê-lo, como se eu fora o velho Bruegel, pintando o vale da queda. Refazendo as delícias. As gregas túnicas. Os gregos banquetes. As reluzentes armas. A plena geografia. O itinerário da fuga.

A mitologia foi também a minha primeira ilha. O primeiro refúgio. O primeiro exílio. A primeira orgia estética.

Queria asas, feitas com cera de abelha e penas de gaivotas, mesmo que derretessem. O calor, a aproximação, nada fora feito para durar. Eu sabia que existia um lugar de ser feliz, dentro dos livros. E nele eu poderia encerrar-me. Mas para fazer o calor durar, era preciso ler um livro, depois outro, depois outro e mais outro!

De menino com asas e semi-deuses, vieram os porcos, os morangos mofados, os transgressores. E tantos outros. Primeiro fui leitor. Depois, preso na torre dos livros erguida com o tempo, debruçou-se em mim, o escritor. Mas ainda agora, sempre que escrevo, clamo por Ícaro. Para voar com ele até um determinado ponto, perder as asas, e despencar do alto, para morrer mil vezes. Porque só se deixa o labirinto e se ganha o céu levando pelas mãos o Minotauro.

Pois Creta pode ser Passo Fundo, a Jornada Literária, e o Labirinto, as lonas onde se encontram as crianças e os jovens. Quem ali entrar sem levar o fio de Ariadne, estará fadado a morrer antes do rodízio. Cinco mil vozes urrando perguntas. Cinco mil corações diariamente bombeando para o autor, o sangue que irá percorrer aurículas e ventrículos até libertar a voz semi-deusa, que eles querem ouvir, a poesia dita de cabeça, a história contada com emoção e graça, a música curiosa cantada com voz aminiótica. Tudo é vital, antes que o abrir e fechar das veias nos conduza para as outras células: da vermelha para a prata, da prata para a amarela, da amarela para a verde, da verde para a azul, da azul para o Olimpo. Uma palavra errada e o acesso ao coração deles pode se fechar para sempre!

E não é o Olimpo dos livros o lugar em que o escritor quer chegar?

Pois lá estive, apenas para contar, para documentar. Um dia me verão exterminador de feras, desenrolador de fios. Por enquanto fui apenas testemunha de como é preciso falar a linguagem das crianças ou dos jovens, para não ser engolido por eles. Como é preciso ter um novelo no bolso da camisa, para não enforcar-se em biografismos e palavras que caem no vazio.

Vi muitos empedernidos, abrindo as pomposas asas, alçando solitários vôos, distanciando-se do que parecia o
cárcere, voando sempre em frente, sem lembrarem-se de que a proximidade com o sol derrete a cera.

Testemunhei, pesaroso, a lei de que a má criatura destrói a boa criação. E que há livros que se finam depois que se conhece o seu autor.

Restará a lamentação de Ícaro, como um quadro de Draper, apenas para guardar na parede, quer dizer, na prateleira da estante! Até que venha uma nova jornada: a de acrescentar-se ao livro-vivo com humildade. Por isso é que Homero-Homem, meu primeiro autor-gente-livro não morreu nunca!

Celso Sisto, autor deste texto, também é Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.