Infanciamente - a infância de hoje e a infância de outros tempos

Não basta ser pai

Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)...

Sou do tempo da propaganda do Gelol. Daquela mesma, que dizia: não basta ser pai, tem que participar! Achava tão bonito o slogan! Ficava sempre querendo um pai daqueles! E o meu era. Um pouco brabo, mas era. E todas as vezes que eu me rebelava, no fundo, no fundo estava solicitando um pai-humano e herói, ao mesmo tempo! É que ter que crescer era no mínimo doloroso! Eu sabia!

A distância entre pai e filho não era mais sufocada pelas convenções e pela tradição amarelada. A criança não tinha mais que ser um adulto em miniatura, mas ainda se usava “senhor” para tratar o chefe da família. E ele tinha o direito de bater, colocar de castigo, premiar os acertos e punir os erros.

Não era ainda a época do predomínio do diálogo. Era a da ordem! E pronto! Por isso talvez eu tenha pavor de gente autoritária! Por isso eu mesmo construí campos de treinamento, regimentos de vanguarda, que ao menor sinal de mando-sem-discussão, me empurravam, destemido, em todas as direções, para usar o escudo da fala e abusar da arma da palavra. Era a única que eu sabia manejar como ninguém! Não eram sentenças vazias ou lanças esquálidas como muitas vezes são os argumentos infantis; eram minas vocabulares, que provocavam combustão, explosão e destroços.

Eu sabia tocar no ponto exato onde a palavra-boxeadora desordenava os ossos! E o resultado era que eu tinha que pagar pela ousadia! Nocaute à base de cinto, às vezes, na privação daquilo que eu mais queria: ser amado! Era esse o grito, sempre sufocado!Sempre incompreendido! Grito de guerra!

Sou bélico! Sempre fui! Mas não sou blindado! Lancei-me ao confronto sem cota de malha. Meu pai me permitia chorar, gostar de poesia, ler tudo o que queria e ainda fazer teatro! Desde que nada disso fosse a sério!Urgente mesmo era se preparar para a vida. E eu estava pronto, quando assisti sozinho à sua despedida. Filho até o último suspiro.

Não repeti suas façanhas. Não sou pai de crianças. Sou, talvez, mais: pai de bichos, pai de livros, pai de idéias, pai de alunos, pai em uma outra dimensão, que não se pode compreender a olho nu, com sentimentos mundanos e comerciais, ou com os apelos do calendário do shopping local.

De mim não nasceram meninos e meninas. Mas podem ter surgido leitores e leitoras, admiradores da arte, estudiosos da escrita, semeadores da palavra, apaixonados pelos papéis de diferentes gramaturas, que comportam tantas vidas (e ainda coloridas e ilustradas)! Aprendizes da natureza das gentes, que desde pequenas são livres para construir a sua própria história. Sim, fui (e sou) esse pai que não está no sangue, mas está nas veias, correndo junto com a imaginação que as histórias sabem avolumar, com a respiração que serve para inflar balões no útero do céu. Sim, a palavra encantada venceu a corrida da vida. Deu-me substância, que agora fecunda outras biografias.

Tenho ou não tenho muitos descendentes? Não preciso de teste de DNA, nem da ameaça de um conselho tutelar. Nem da reivindicação dos direitos humanos. Preciso mesmo é da mão que embala filhos de papel. Essa paternidade ainda me basta!

Celso Sisto, autor deste texto, também é Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.