Infanciamente - a infância de hoje e a infância de outros tempos

Vidas perdidas

Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)...

Celso Sisto*



Experimentar a partida sem volta é doloroso! Ainda hoje! E talvez sempre! Primeiro o pintinho amarelo ganho em uma promoção de supermercado. Depois o passarinho inchado de pios, vazio de ninho, alimentado com pão molhado no leite. Mais tarde a pombinha conquistada em força de armadilha, privada de asas, tratada com quirera e feita aprendiz da ingratidão pura: num descuido do tempo, as penas crescidas no silêncio levavam-na de volta ao céu (merecidamente!). E eu, terra dolente cercado de lágrimas por todos os lados, não aprenderia nunca o “desavoar”.  Ficaria faltando sempre abraçar-me ao outro, que voar sozinho era queda-livre na certa!

Aprender a padecer da falta de substituição e dos vazios irremovíveis não aprendíamos! Ensinavam-nos que as coisas cresciam, ou renasciam, ou simplesmente feneciam: o lápis de cor acabava e esperava-se muito para ganhar uma nova caixa; os cabelos e unhas cortados frequentemente ressurgiam devagar; a rosa aberta que se exibia em perfume e cor tombava um pouquinho por dia. Crescíamos e as roupas só cresciam conosco em datas especiais: aniversário, dia das crianças, Natal. Mas o objeto encolhido ganhava outro dono. E a caridade biológica mirava o irmão mais novo ou o primo menor.

Ensinavam-nos a dar. Não a perder. A não querer só quando não servia mais. E pronto! Ninguém dizia que era preciso se preparar para as ausências eternas.
Morria primeiro um vizinho, e o assunto vinha à tona. Eram legiões de anjos saindo das bocas, para agüentarem o peso de quem teriam que levar para o Céu.
Apontavam estrelas para fazerem-nos acreditar que nela morava agora aquele que nos deixou. Mostravam-nos nuvens performáticas para ameaçarem-nos com um olhar que vê tudo: “Olha, teu avô está lá no alto, vendo tudo o que tu fazes, te protegendo…”

Era assim. E até era bom!

Mas nada disso evitava o dolorido que não tinha local certo no corpo. Que doía em tudo e ao mesmo tempo sem poder ser apontado na visita do médico. Um amigo era levado pela meningite. Um parente de um conhecido tinha sido embrulhado num acidente de carro. As águas do mar tinham enrolado e sumido com o sobrinho de uma amiga da mãe. A tia velhinha do pai dormiu, suspirou e desapareceu. De longe ou de perto, todo mundo era um pouquinho a louça rachada com a dor.

Hoje o findar perdeu voltagem e choque. Tudo ganhou velocidade de turbina de avião. Tudo se joga fora. Inclusive as pessoas, os sentimentos, as idades que viriam. E o menino desse século 21 quer e não precisa esperar. Se joga no chão e consegue o que quer. Não quer mais e logo compra o que não precisa. Vê o do outro e adquire igual. Fala mais alto e os pais se curvam. Agride e não é punido. Maltrata e não é castigado. Estraga e não fica sem. Erra e nem se abala.
Não pede desculpas. Não agradece. Não diz “por favor”.

Para completar, as perdas são bombásticas e aumentadas em imagem e cor. A televisão empurrando a vida distorcida goela abaixo, prolongando a morte dos que ela decide que são notícias, até a exasperação. E as crianças querendo só vida de modelo, atriz, jogador de futebol. Da noite para o dia.

Os fortes escolhem viver intensamente para experimentarem tudo em frações de segundos? Nós, os loucos (e não somos poucos!) não escolhemos nada?!
Escolhemos o gotejar do tempo, que conjuga outros tempos, para exibirmos às nossas crianças os álbuns de família. E para contarmos outras histórias, mesmo que de finais felizes, que ainda não ficou proibido ser feliz para sempre!

Celso Sisto, autor deste texto, também é Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.


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