Infanciamente - a infância de hoje e a infância de outros tempos

A revolução pelas palavras

Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)...

É preciso aprender a silenciar. Só no silêncio há peso suficiente para engordar as palavras. Ouvir o rumorejo que acorre de todos os lugares (cabeça, corpo, memória, fantasia, história, idade) para sedimentar um discurso coerente, para erigir e trançar com firmeza, as nossas posições no tabuleiro do jogo.

Vivemos um jogo, do início ao fim porque herdamos um lugar, uma cultura e tudo o que esteve antes por ali. E é ali, desde o tempo dos balbucios, que somos ensinados a pertencer. Quanto mais ficamos, mais adquirimos as marcas do lugar. Mais somos. Para a alegria. Para o orgulho. Para o reconhecimento dos traços que nos enlaçam: vocabulário, vestimenta, culinária, calendário, vultos, música, dança, folguedos, hábitos, festas, mitos, lendas, poesia.

Pertencer exige pactuação. Para além da geografia. E a irmandade pode se dar em muitos outros níveis. Enquanto se comemora a República Farroupilha, fico pensando…

Para mim a maior revolução foi a leitura. Tornar-me independente para ler tudo e na hora que eu quisesse, era proclamar a república, em favor das letras. Era nesse espaço-tempo que eu queria morar. Não depender do governo imperial da mãe, do pai, dos adultos para brindarem-me com histórias era tudo o que eu almejava. Poder enlaçar o livro, abri-lo, domá-lo, subjugá-lo docilmente, e poder dizer no fim, isso é meu! Agora ninguém me toma! Claro, depois de lido, o livro é de quem o leu, e não dá mais para arrancá-lo, assim como não se pode desdizer uma palavra que foi dita. A boca não consegue engolir uma palavra que já foi pronunciada!

Os discursos estão aí para dar testemunho, para justificar, para convencer. E Bento Gonçalves, defendendo destinos, diz: “O que fizemos não foi uma rebelião e sim estamos fazendo uma resistência legítima”.

Por trás de tudo, está a construção da Nação. Por isso, quero celebrar a Nação Literária, a Nação das Palavras. Uma Nação que também é criada através da língua e da leitura. A consciência dessa história que se forja ao lado, na margem, numa via paralela, secundária, a gente só adquire depois de muitos livros lidos, bebidos, mastigados, cuspidos. Falar dos livros é treino para o discurso próprio, que quanto mais se independentiza, mais sedutor fica. É a tal da peculiaridade avançando junto a nós, para provar que o indivíduo também é o seu texto único. Como Bento, que defendia o “Direito das Gentes ou princípios da Lei Natural aplicados à condução e aos negócios das nações e dos soberanos”. Ler é treino para a soberania!

E a leitura é direito das gentes! A Escola me presenteou isso. Ou me apontou caminhos. Num primeiro momento, lembro-me do diário de Henrique, que no exercício de tornar-se homem, foi tornando-se também um verdadeiro patriota, com sensibilidade e honra, na Itália unificada, em “Coração”, de Edmond de Amicis.

Mas a minha ferocidade, estimulada, aguçada, foi desenjaulada com “A revolução dos bichos”, com “Memórias do Cárcere”, com “A casa Verde”. Orwell, Graciliano Ramos, Vargas Llosa, me atiraram de encontro a esse ser político que eu precisava me tornar.

Minha grande experimentação ideológica foi sim nos livros! Sobretudo nos textos de teatro: Brecht, Maxim Gorki, Tcheckov, me conduziram pela mão ao território sagrado do ser social, combatente, atuante, mesmo pela visagem dos contrários. Confeitado ainda pela poesia de Maiakovski!

E a literatura, correndo pelas veredas secretas da leitura, operou em mim a verdadeira revolução. Farroupilha sim, no que tange ao direito de ter voz própria! No que me faz cidadão!

No fim, o que fica gritando é ainda a urgência da construção do Leitor Nacional Brasileiro! Início, meio e fim para cada um celebrar sua identidade! Somatória e não-excludente!

Viva a Revolução das palavras!

Celso Sisto, autor deste texto, também é Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.