Guardiões das memórias do tempo

Claudia Lins

Eles nos conduzem por mundos que muitas vezes só existem em nosso imaginário. Emprestam sua voz, seu corpo e sua alma para que possamos viajar por lugares desconhecidos percorrendo trilhas fantásticas. Fantástico, aliás, é o dom que muitos deles possuem de nos hipnotizar, emocionar e seduzir, apenas com o poder das palavras. Homens ou mulheres, os contadores de histórias representam, antes de tudo, seres imprescindíveis  na vida de todos os povos.

O contador Roberto de Freitas/Foto: facebook

A cada geração, em cada lugar, a todo tempo, assumem diferentes papéis, sua imagem está fortemente ligada à preservação da oralidade, das tradições e dos costumes, mas especialmente ao prazer e ao encantamento que despertam por seu modo simples de recontar a vida. Seja nas aldeias indígenas, ou nas mais afastadas comunidades tradicionais brasileiras, aquele que se dedica a contar o que ouviu dos antigos, reconta para os mais jovens um mundo que seus olhos não veem, mas seus sentidos são capazes de interpretar e recriar para que, no futuro, outros, ainda mais jovens, possam vivê-lo em toda sua magnitude.

Nos países africanos, a figura dos mágicos contadores, griôs e arokins, sobrevivem evocando a sabedoria e o encantado, enquanto as rodas de histórias ao redor das fogueiras e ao pé das grandes árvores permanecem como devem permanecer todos os costumes genuínos.

Pelos lábios dos anciãos, contos e lendas dão vida a acontecimentos imaginários, traduzindo memórias de tempos longínquos. Assim se estabelecem os vínculos entre as gerações, e o cotidiano prossegue impregnado de histórias, graças aos guardiões das memórias e do tempo.  Como disse certa vez Amadou Hampâté Bâ (1900-1991), sábio contador daquele continente: “ Na África, toda vez que um velho morre é uma biblioteca que queima”.

Somos estórias em movimento. Parábolas vivas. E quem conta estórias vive várias vidas em uma só, descreve Afonso Romano de Sant’Anna em contação de estória: vida e realidade, prosa de abertura para o livro Contadores de Histórias um exercício para muitas vozes, organizado por Benita Prieto e lançado durante a última edição do Simpósio Internacional de Contadores de Histórias, no Rio de Janeiro.

A contadora Suzana Nascimento, Simpósio Internacional de Contadores, RJ

Mesmo nesses dias de urgência virtual nos quais vivemos em que as palavras parecem voar mais rápido que a velocidade da luz, quantas vezes não nos sentimentos tocados por alguém que nos eleva a mágica condição de viajantes do tempo, a partir do reconto de uma bela história?

Algumas vezes nos encanta o tom de voz, o gestual do corpo, noutras o simples modo de contar do outro, como se naquele instante da história contada, não existisse nada além do fio tecido de palavras cuja trama invisível se transmuta em cores, aromas e sensações, bem diante de nossos olhos. Talvez esses momentos nos despertem para um sentir ancestral que sempre nos envolverá ao nos depararmos com a figura de um legítimo contador de histórias.  Por isso, nesta data, 20 de março, em que lembramos com especial atenção os homens e mulheres que se dedicam a bela arte do contar, impossível não lembrar da gente simples que anonimamente perpetua o conhecimento e a beleza dos contos e lendas por esse Brasil a fora.

Conheci no sertão, às margens do Rio São Francisco, num povoado mágico chamado Ilha do Ferro, lugarejo de bordadeiras e pescadores contadores de histórias, um velho artesão encantador de palavras. Fernando era seu nome, viveu na terra transformando madeira em personagens de tramas tiradas do pensamento, outras herdadas dos avós, contadas desde os tempos antigos, como costumava dizer. Com ele aprendi histórias do Nego D´água, de lobisomem, da sereia mãe dos rios e mares, de Lampião e Maria Bonita  e do encantado fogo-corredor. E mesmo hoje, quando o reconheço estrela cadente num céu de histórias, ainda me encanta a lembrança de um dia ter compartilhado suas memórias, de ter aprendido tanto.


1 comentário

  1. Contadores de história são magia pulsante, literatura em carne e osso, livros vivos que nos transmitem muito além do que é dito com os lábios, com os olhos, com os gestos. Não há nada mais fascinante que uma boa conversa com um contador de histórias acerca do que ele faz, vê-lo em ação, ou então retirar algumas horas do dia para visitar aquela senhora idosa com tanta vida nas costas e experiência na boca. Excelente matéria, Claudia! Aliás, excelente site, iniciativa, tudo! Parabéns.