A importância do encantamento na formação de leitores e na vida

VassalloPor Márcio Vassallo

Tenho falado sobre a serventia do encantamento na formação de leitores e no dia a dia, para as mais diferentes plateias, há vinte anos, e uma das coisas que mais escuto, em todas as regiões do Brasil, é a dificuldade de provocar uma fissura pela leitura no coração das crianças e dos adolescentes.

Longe da estrada, conversando comigo sobre esse assunto, uma sensível amiga me disse: “Os programas de TV e os jogos de internet tem se tornado cada vez mais chamativos e geram um efeito hipnótico nas crianças. Percebo que elas ligam a TV ou o computador e não há guindaste que as tire de lá”.

Fiquei com essa imagem do guindaste me perturbando a ideia e agradeço à minha amiga, claro. Afinal, o que é um escritor sem perturbações?

O que é mais sedutor numa perturbação? O que é mais perturbador numa sedução?

Bem, nesse sentido, penso que toda sedução exige espera, e um leitor nós precisamos ganhar aos poucos; sem pressa, sem insônias, sem ansiedades, sem cobranças.

Não conquistamos um leitor usando guindastes para puxá-lo de frente da televisão e da internet e levá-lo para a frente de um livro, até porque esse livro pode ser um abridor de bocejos.

Quando menino, minha televisão e minha internet eram um campinho de terra perto da minha casa, onde eu jogava bola, numa vila naval, onde morei durante cinco anos, em Belém do Pará. Se os meus pais tivessem tentado me tirar desse campinho para que eu lesse livros, por mais deliciosas que fossem as histórias, por mais assombrosos que fossem os textos, hoje em dia talvez eu nem passasse perto de uma livraria. E só comecei a me encantar pela literatura, de verdade mesmo, aos treze anos de idade. Tem gente que se encanta mais tarde, ou que não se encanta nunca, mas vai ter loucura por música, cinema, pintura, teatro, dança, pelo que for.

Ninguém pensa em obrigar um menino a ir a um show de rock, ou ao cinema; ver a exposição de um artista plástico, assistir a uma peça, ou a um espetáculo de dança. Mas muitas pessoas se desesperam quando acham que o filho não gosta de ler.

Obrigar uma criança a ler; transformar a leitura num dever, num mero teste de memória e respostas certas, num pretexto para ensinar gramática, tudo isso é o mesmo que pensar em encantantamento obrigatório. Não há como obrigar uma pessoa a suspirar por outra. Também não podemos achar que alguém vai amar um livro só porque desejamos que isso aconteça.

As pessoas não são prolongamentos dos nossos desejos.

O poeta Mario Quintana já disse que o fato é um aspecto secundário da realidade, mas o fato é que cada pessoa tem os seus próprios intereresses, as suas próprias inquietações, o seu próprio tempo, o seu próprio ritmo, o seu próprio movimento, a sua própria forma de ser.

Ainda mais importante do que despertar a paixão pela leitura nas crianças e nos jovens, sem pressões, é provocar neles o gosto pela fantasia, pelas narrativas, pelo que há de mais tentador, mais poético e mais inadiável na vida; nas coisas mais simples e aparentemente sem importância; em tudo o que nos cerca; nas belezas que tantas vezes não reparamos por conta de urgências que nos embaçam o olho e nos empalidecem por dentro.

Tantas vezes embaçados e empalidecidos, nos esquecemos que não lemos só os livros. Do mesmo modo, lemos uma cena na rua, a porcelana de um rosto, o desenho de um gesto, a rouquidão de uma voz, as dobras de um silêncio, o pedaço de uma conversa entre dois estranhos que cruzam o nosso caminho… Lemos tudo o que está à nossa volta, e somos lidos também, claro.

Depois de uma palestra que dei na bela feira do livro Rio do Sul, no interior de Santa Catarina, um menino chamado Gabriel, de dez anos, me perguntou:

– Você é capaz de ler uma paisagem?

– Sim, uma das coisas que eu mais gosto de fazer na vida é ler paisagens, principalmente o que está escrito nelas e ninguém para para ler – respondi.

Quando desci do palco e estava indo embora, o Gabriel me fez outra pergunta:

– Márcio, se você fosse um livro, o que você faria?

– Eu me abria – disse a ele.

– Ah, já sei, para deixar fluir… – o menino concluiu, se despediu de mim e saiu, fluindo no meio da multidão.

Saí do encontro pensando que aquele garoto era um seduzido pelo que o mundo tem de mais simples e sublime; e pela poesia que está em tudo.

Sim, a paixão pela literatura é uma das consequências de quem é seduzido pela poesia.

Mas não podemos provocar encantamento pela poesia, pela beleza, pela vida e pela literatura nas crianças e nos adolescentes, se também não nos encantarmos por tudo isso. Não para seduzir leitores, mas sim porque é irresistível viver em estado de encantamento, apesar dos nossos tormentos, das nossas perdas, dos nossos lutos, das nossas tristezas, dos nossos vazios, das nossas paralisias, dos nossos medos, das nossas dores mais íntimas e obscuras.

Afinal, viver em estado de encantamento é reparar nas coisas, nas pessoas e em nós mesmos com olho de fundura mexida e susto de descoberta.

Quando nos disponibilizamos para esses reparos, no cotidiano, descobrimos que somos capazes de olhar para tudo de um modo só nosso, com uma impressão digital no pensamento. E se somos capazes de ter uma impressão digital no pensamento, também podemos fazer nossas escolhas mais autênticas e essenciais, e sermos felizes, à medida do possível, e na beira do impossível, por que não?

Acho que nem toda pessoa autêntica é feliz, mas toda pessoa feliz, antes de tudo, é autêntica.

E o que é uma vida sem o exercício da própria identidade?

Ainda mais do que um prazer de abrir suspiro, ler uma história que nos tire o sono, ou um poema que nos arrebate, é um encontro marcado com a nossa mais profunda identidade.