A leitura além do óbvio: subtexto, texto, contexto

Celso Sisto - CAMISA XADREZpor Celso Sisto

O exercício da leitura é uma ação complexa, sem dúvida. Há, processado nesse ato, pequenos episódios, que vão desde olhar o texto, decodificar o código linguístico, produzir sentido para aquilo que está sendo lido, formar imagens mentais para o que se acabou de ler e, ainda, relacionar isso com o todo. Ufa! Não é uma operação simples. E ainda mais se pensarmos que tudo isso acontece em frações de segundos… Mas somos, em geral, treinados para executar tais ações desde a mais tenra idade. Mas nem sempre o leitor comum, avança para novos estágios em sua qualificação de leitor. É necessário um plano, bem construído e frequentemente monitorado, para que esses estágios de leitura sejam atingidos. E a Escola, deveria ser, por excelência, o lugar ideal para isso.

Sabemos, que com o passar do tempo, nossa bagagem de leitura vai aumentando e vamos ficando mais exigentes em relação à qualidade daquilo que a gente lê. A leitura também deve desafiar o seu leitor. Ler sempre a mesma coisa é cair num comodismo que não aprimora o leitor e nem o ato de ler. Se ler é uma tarefa complexa, os textos iniciais devem ser mais simples. Mas, se ler é uma tarefa complexa, o normal é que com o avançar do tempo e da idade, o leitor seja capaz de ler textos muito mais elaborados. Nem sempre é assim!

O grande prazer do leitor que vai se qualificando cada vez mais é poder perceber, com uma certa tranquilidade, a construção primorosa (ou não) que envolve o texto que está sendo lido. Os elementos que compõem aquele tecido textual são no mínimo pérolas, e lê-los de forma adequada é polir permanentemente essas pérolas.

Mas, vamos dizer de outro modo: um texto é feito de camadas! E na medida em que o leitor penetra nessas camadas, ele percebe que o texto tem direções, e que ele pode ler na horizontal e na vertical. Explico: ler na horizontal é ler o óbvio, a superfície, aquilo que está escancaradamente aparente! Ler na vertical é ir detetivando, descobrindo cada ponto que forma aquela trama (de tramado mesmo! O texto é um tecido!). E estou pensando aqui, o tempo todo, na leitura literária.

Grosso modo, identifico essas três camadas de um texto: a aparente (texto); aquilo que está escondido no que é aparente (subtexto); e aquilo que se relaciona com o texto, mas que pode estar fora do texto (contexto).

A noção de subtexto vem também do teatro e está creditada ao diretor russo Constantin Stanislavski. Subtexto, no teatro realista de Stanislavski é isso: ao pensarmos no que se diz e no que se mostra na cena, abrimos espaço, simultaneamente, para aquilo que não é dito e nem mostrado, mas que se pode perceber, intuir, prever, porque também está ali o tempo todo, ainda que de modo oculto. Estamos falando de uma espécie de complemento, de recheio, que dá consistência, coerência, “tridimensionalidade”, credibilidade para um texto. E é o subtexto que permite variadas e diferentes interpretações de um mesmo texto. Também podemos encarar o subtexto como um fluxo que corre paralelo ao texto, um “conglomerado textual” que está repleto de impulsos e motivações, que levam ao texto, que levam àquelas palavras escritas/ditas ali. Então, o subtexto de um texto também é essa rede de relações, de causas, de possíveis efeitos, de reflexões que justificam, de modo interno, tudo o que acontece em um texto e tudo o que constrói a superfície desse mesmo texto.

Mas a leitura ganha mais corpo ainda porque tudo isso têm desdobramentos. O texto precisa então desse subtexto, para se abrir também para um contexto. O contexto é essa outra camada, esse outro nível de expressão, que também atua no texto, mas que vem carregada de informações culturais, sociais, estéticas, políticas, no qual o texto e o leitor estão inseridos. Então, podemos pensar em contexto situacional. E isso aumenta no leitor a capacidade de ler com eficácia um texto. Todo e qualquer texto precisa ser pensado em seu contexto de produção e ao ser lido, sofre o adendo do contexto em que está o próprio leitor.

Puxa, não é tão simples assim, né? É como se o leitor tivesse que também passar por esse processo de alfabetização e alfabetização literária. Há, portanto, um trajeto que pode ser benéfico na formação desse leitor: que vai da oralidade, passa pelos clássicos da literatura universal e nacional, pelos diversos gêneros textuais (fábula, lenda, mito, conto, crônica, etc.) até chegar na poesia, que para mim é o requinte total da leitura. Quanto mais o texto opera na síntese (o caso da poesia), mais ele acumula complexidades…

Pensando exclusivamente na minha área de pesquisa e trabalho, tomo a liberdade de listar algumas coisas que eu quero encontrar em bons livros infantojuvenis:

  1. Originalidade na abordagem do tema (que surpreenda o leitor e o crítico);
  2. Uma força vital, que impele o leitor a colocar-se no lugar do outro;
  3. Uma empatia que faça o leitor encontrar-se com as personagens da obra e consigo mesmo (catarse aristótélica);
  4. Verossimilhança, ou seja, que convença o leitor, por mais fantástica que seja a história.
  5. Uma extensão que seja capaz de manter o leitor interessado do início ao fim.
  6. O uso da linguagem que transporta o leitor para além dos estritos limites da palavra escrita e alargar sua percepção de mundo
  7. A presença de vazios, ou seja, espaço para  a ação do leitor, para que este se torne co-autor do que lê, partindo do seu próprio horizonte de expectativas para rompê-lo
  8. A perspectiva da criança (e não da cabeça de um adulto que escreve de modo distanciado), para que ela possa encontrar ressonâncias de suas questões mais prementes.
  9. Respeito à inteligência e a sensibilidade infantis.
  10. Convite à releitura e caminhos para converter-se em um instrumento de libertação

No final das contas o que precisamos é de um repertório amplo de leitura, que nos possibilite ler cada vez mais e melhor!

Para complementar tudo isso, de forma eficaz, pratico também a leitura em voz alta do texto. Só ganhando “corpo e voz” no tempo e no espaço é que eu posso sentir (ler também é tocar) o texto e dimensionar a potência dele. Com isso, o texto explode em mim e eu posso fazê-lo explodir no outro. Mas explodir aqui não é ato terrorista, é ato de emoção compartilhada! Ler é também contemplar a paz!

 

 


1 comentário

  1. Muito bom! O texto “explodiu em mim” e pretendo “fazê-lo explodir” em outros.
    Grande abraço,
    denise