A MULHER DE UMA CRÔNICA SÓ

PALAVRA JOVEM

 Série de crônicas por Severino Rodrigues

Foto Site Pixabay

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Ana Silva nunca foi uma excelente aluna. Só passava em Português com a nota mínima exigida e ainda arredondada pela bondade da professora. Gostava de ler, mas não escrevia. Cresceu.

Um dia, leu na internet enquanto aproveitava o tempo livre do horário de almoço do trabalho uma notícia sobre um concurso de crônicas. A premiação em dinheiro era boa. As inscrições encerravam naquele mesmo dia. Decidiu participar, mas não sabia o que escrever.

No ônibus, ao voltar para casa, lembrou de um episódio familiar qualquer e resolveu desenvolver a sua crônica sobre isso. Se não estava errada, esse gênero versava sobre qualquer coisa do cotidiano.

Ao entrar em casa, sentou em frente ao computador e em menos de meia-hora escreveu o texto, revisou e enviou por e-mail para o concurso. Agora era só esperar.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, Aimeé Bittencourt formada em Letras com habilitação nas línguas portuguesa e francesa, com mestrado e doutorado sobre crônica pela mais bem conceituada universidade do Brasil revisava pela centésima vez o seu texto.

Trabalhava nessa crônica desde o dia em que o edital fora lançado, ou seja, há três meses atrás. Só conseguiu largar a revisão e mandar perto da meia-noite com o tempo para recebimento das crônicas quase expirando. Respirou fundo e anotou na agenda o dia em que sairia o resultado.

Dois meses depois, divulgaram. Ana Silva ganhou o primeiro lugar e sua crônica intitularia até a antologia. Aimeé Bittencourt nem menção honrosa.

Ana Silva participou da cerimônia de gala: ganhou medalha, troféu, certificado, alguns exemplares da antologia com seu texto e o dindin. Aimeé Bittencourt pediu duas pizzas nessa noite para afogar as suas mágoas.

No dia seguinte, Ana Silva continuou a trabalhar sem qualquer pretensão literária e Aimeé Bittencourt seguiu escrevendo suas crônicas. Publicaria nem que fosse de modo independente com uma orelha escrita pelo seu professor orientador da universidade. Ele não negaria esse favor.

Meses depois, uma professora e autora de livros didáticos fuçando novidades nos sebos, o seu hobby, encontrou um exemplar da antologia com a crônica de Ana Silva. Conseguiu incluir o texto na nova edição do seu livro que receberia investimentos pesados da editora em divulgação, tornando a coleção referência no país inteiro.

Inclusive a professora que arredondava as notas de Ana Silva adotou o livro e mostrava aos alunos o que era uma crônica a partir da leitura do texto da aluna que sequer lembrou que um dia foi sua. Afinal, Ana Silva no colégio era inexpressiva. E seu nome idem.

Aimeé Bittencourt publicou sua antologia de modo independente, mas não conseguiu esgotar nem a primeira edição.

Anos depois, outros livros didáticos e antologias passaram também a publicar a famigerada crônica e ela se tornou referência. Um exímio exemplo do gênero escrito em língua portuguesa e influenciando até futuros escritores.

Aimeé Bittencourt continuou publicando de modo independente, mas sem obter qualquer sucesso.

Ana Silva não publicou mais nada, mas ainda assim foi eleita para Academia de Letras da sua cidade.

A coluna Palavra Jovem é publicada quinzenalmente em Mundo Leitura, toda quinta-feira.severino2

O autor, Severino Rodrigues, é escritor, professor e mestrando em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Destaque no Concurso Rubem Braga de Crônicas da Academia Cachoeirense de Letras, publicou pela Cortez Editora, em 2013, o suspense juvenil Sequestro em Urbana.