A punição

PALAVRA JOVEM

 Série de crônicas por Severino Rodrigues

Foto: site de imagens gratuitas Pixabay

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Não lembro ao certo qual motivo desencadeou esta história que chegou aos meus ouvidos. Mas sei que foi a minha mãe quem contou. Talvez ela estivesse me alertando ou repreendo algo que eu tivesse feito. Em suma, o castigo que o menino da história recebeu foi um banho de água sanitária.

Foi assustador para mim e passei um bom tempo pensando. Pelo que entendi, um menino, talvez de rua ou simplesmente com uma liberdade desassistida pelos pais, cometeu um furto no supermercado que ficava próximo à minha casa, roubara um pacote de biscoitos. Um segurança flagrou a cena e conseguiu segurar o menino, evitando que ele fugisse. E puniram o menino com um banho de água sanitária.

Imagino a cena dele maltrapilho, apenas de calção puído, com os braços presos por uma das mãos do segurança enquanto que com a outra, num gesto hábil, este destampava uma garrafa de água sanitária da marca mais barata e se divertia com o desespero do menino arrependido.

Aquele segurança executa, então, a ação, fazendo os olhos do menino arder, o peito sufocar e a língua queimar em contato com o líquido derramado devagar a princípio e depois avidamente, a fim de aprofundar o sofrimento. Depois, o segurança que prendia o menino largava o coitado não sem antes dar uma tapa na cabeça dele. A brutalidade exige mais de um ato de agressão.

Desarvorado, o menino chorando corre, mas mal podendo correr, pois está quase sem ver, embora louco para ir embora do supermercado. Alguns clientes sentiriam o cheiro do alvejante, veriam as marcas úmidas no piso e até mesmo o menino em fuga – ou em liberdade – pelos corredores e se muito pensariam por poucos segundos, logo retornariam às compras, e muitos se inflamariam de raiva e exigiriam a demissão do segurança justiceiro.

Isso na década de 90. Isso não faz tanto tempo assim. Isso é uma história real.

Ao ouvi-la, contada por minha mãe, sentia medo, pavor. Também servia como aviso. Não roubar, caso contrário a punição seria a mesma. E só de pensar na possibilidade, me imaginava no lugar do menino, com os olhos ardendo, sufocando com a água de odor forte e com a língua pegando fogo.

Em tempos em que a palavra justiça parece cada vez mais presente, em debate, ao recordar essa história, fico com duas possibilidades em mente: a primeira, conclusão da infância, aquele menino nunca mais roubaria; a segunda, reflexão de adulto, talvez aquilo de nada adiantasse ou resultasse em algo pior como o menino voltando a roubar depois de um bom banho de água da torneira.

O mistério, no entanto, ficou na minha cabeça e não sei o destino dos dois participantes dessa história. Mas ela sempre volta à mente e não responde a minha pergunta sobre se devemos agir ou não com as próprias mãos.

A coluna Palavra Jovem é publicada quinzenalmente em Mundo Leitura, toda quinta-feira.severino2

O autor, Severino Rodrigues, é escritor, professor e mestrando em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Destaque no Concurso Rubem Braga de Crônicas da Academia Cachoeirense de Letras, publicou pela Cortez Editora, em 2013, o suspense juvenil Sequestro em Urbana.