Infanciamente - a infância de hoje e a infância de outros tempos

Cheiro de papel e tinta

Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador, especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)...

Na época das bolhas de sabão, feitas com canudinho de mamona, os livros infantis eram caros, muito caros. Além de umas poucas livrarias tradicionais e centrais, eram quase sempre as grandes papelarias que vendiam livros. E nesses casos, para prover as encomendas das Escolas. Por isso imperavam os livros de bolso da Ediouro! Sim, aqueles que sempre soltavam as folhas e que exigiam um cuidado clínico, uma dieta de amor extremo e de carinho constante(um pouco difícil para meninos estabanados!).

Havia quem encapava os livros, com plástico ou papel, não importava. Isso já anunciava o dono: freqüentador dos labirintos das letras ou atleta do descuido. Sobrecapa para fazer durar mais ou para evitar que o leitor amarfanhasse e cirurgiasse o livro numa única leitura! Leitura mutiladora ninguém queria, ora! Muito menos a professora na escola!

Mas havia quem emprestasse os livros. E com livros emprestados, a vigilância deveria ser redobrada, com sentinelas em ronda permanente. Mãe, pai, avô, sempre a ladrarem: “cuidado com o livro da tua tia”, “não vai me esquartejar o livro da tua madrinha”! “Por isso e que tua tia não gosta de emprestar os livros, tá vendo”?

Pois é! Sempre havia a biblioteca de uma tia ou de uma madrinha, que mais endinheirada, tinha estantes de mogno e fileiras inteiras de livros encadernados com capa dura e título gravado a ouro! Às vezes, para a pura exclamação das bocas arredondadas: “Nossa, quanto livro”! “Você já leu tudo isso”? E o perguntador, quearregalava os olhos com ar indisfarçável, passava a mirar a dona da biblioteca-a-metro com segredo de vilão e ouvidos atentos às instruções dos anjos tortos, esses que estão sempre soprando no ouvido infante, mil idéias de como usar os livros de forma… menos convencional, é claro! E sem permissão, é claro! Se não perde a graça, é claro!

Pra mim, chique mesmo era ter a coleção da Biblioteca Infantil Quaresma, com o livro de Contos da Carochinha, do Figueiredo Pimentel. Ficava namorando o livro na estante da casa da tia Péia, que não me emprestava, porque dizia que eu não tinha idade suficiente, nem para ler, nem para dar ao livro o tratamento merecido! Acho que sempre que penso em bruxa, penso em bruxa com cara de tia! Dessa tia! Vingança tardia!

Se eu não podia ler a Carochinha, me contentava, em parte, com as enciclopédias e as coleções, que eram vendidas de porta em porta. Essas iam inundando a minha casa, com a permissão monetária do chefe da família.

Meu pai, que gostava de estudar História Universal, adorava a platéia dos três filhos curiosos (às vezes meio sonolentos…). Contava as histórias da 2ª Guerra Mundial e ficava esperando nossas perguntas, levantando o queixo, como quem dizia, “e então?”. A gente se olhava, ria e aumentava sua agonia de professor sem diploma. Mas adorávamos. Ele já tinha olhos-holofotes, jogando luz adiante, anunciando a preocupação com uma educação para a paz. Mas não era só isso: ele sabia que toda a história da humanidade era uma história de disputa, de conquista, de escravização. Subjugantes e subjugados! E mostrava fotografias, e apontava os livros enormes: Grande Crônica da Segunda Guerra Mundial e seus três sanduíchicos volumes! Mandava a gente abrir as portinholas escondidas atrás dos olhos, para guardarmos para sempre as configurações do horror e da crueldade. Essa era o seu alimento, o banquete que ele nos oferecia!

A verdade é que subjugados e subjugantes eram palavras que não saiam da minha cabeça. Eu ficava remoendo os subtítulos: “De Munique a Pearl Harbor”; “De Pearl Harbor a Stalingrado”; “De Stalingrado a Hiroxima”. E fui trocando, ao longo do tempo, as partidas e as chegadas: De Andersen a Lewis Carroll; De Lewis Carroll a Lygia Bojunga; De Lygia Bojunga a Mia Couto. Transformar fatos de guerra em fatos literários me apaziguou a vida.

De repente, minha imaginação salta de susto, como se me dissessem “mãos ao alto”! Me dou conta de que não há mais vendedores de livros porta a porta. Aliás, se bobear nem há portas! Há grades e câmeras vigiando tudo! Enquanto isso, as feiras de livros de hoje estão abarrotadas de livros ruins e parca literatura. Tenho horror das maletinhas da bobalização dos clássicos universais, que contam toda e qualquer obra infantil em 10 frases, que não servem para encantar nem leitor iniciante!

E de repente, me espanto: livros de computador, que as crianças lêem hoje, não tem cheiro! Já viu isso? Não revelam a textura, não exalam o perfume da tinta fresca, não exibem a pele do papel, e roubam a carícia de quem pelo tato, também estampava seu amor nos livros!

Livro exige mãos! Para segurar, para confessar, para plantar. Mãos ao alto, mas para lançar o livro para o outro!

Celso Sisto, autor deste texto, também é Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país.